quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Controle

De Antonio Prata.

Dentre os vários mistérios deste mundo, um tem me intrigado especialmente (pelo menos desde que voltei do 95, onde fui discutir com a dona Marlene uns pormenores à respeito das vagas na garagem): por que diabos algumas pessoas enrolam o controle remoto com magipac?
Quem, como a dona Marlene, embrulha o controle como se fosse uma sardinha a ser congelada, deve acreditar que o está protegendo. Mas protegendo-o de que, meu Deus? De nossas mãos imundas? Se é assim, se com o simples toque macularemos a suposta pureza do objeto, teremos de enrolar tudo em folhas de plástico: do teclado do computador ao papa. Não seria mais fácil, de uma vez, usarmos luvas cirúrgicas?
Talvez não sejam de nossas mãos, no entanto, que as zelosas donas Marlenes desse mundo protejam o controle, mas de algo pior. Quem sabe um tornado passe sobre o bairro justamente quando minha vizinha do 95 foi comprar peito de peru na padaria e deixou as janelas abertas? A sala é inundada: perde-se o sofá, o abajur, a tv, o tapete de sisal, anos e anos de economia, mas o controle remoto, oh!, santa precaução, o controle remoto sobreviverá, incólume, em meio aos destroços. E agarrada ao pequeno e lustroso sobrevivente, chorando, descabelada, a boa Marlene se ajoelhará entre os destroços e agradecerá aos céus por ter tomado seus cuidados impermeabilizantes.
Tento evitar o preconceito, tenho terror à discriminação, mas devo confessar que jamais seria capaz de uma relação mais íntima com uma pessoa que fosse adepta de tais exageros, digamos – ou suponhamos --, assépticos. Desconfio que quem embrulha um controle remoto é capaz de coisas muito piores. Flores de plástico, por exemplo.
O terror que representa uma flor de plástico é facilmente compreendido por qualquer sujeito que já tenha visto uma flor de verdade, dessas que abrem, cheiram bem, depois morrem – e só por isso, oras bolas!, são belas. Uma flor de plástico é como uma mulher de plástico, um bife de plástico, um pôr do sol de plástico.
A essas pessoas que, se pudessem, faziam-se todas poliuretano, pergunto: se as flores são de plástico, porque não também uma boneca inflável no lugar da esposa, umas Barbies no lugar dos filhos e uma dessas amostras de vitrine de restaurante japonês para o jantar? Sim, eis o caminho inexorável: primeiro o magipac no controle, depois as flores de plástico e, quando vamos ver, George Orwell dominou geral.
Sei que é preconceito. Sei que depois de publicada essa crônica virão cartas e e-mails furibundos. Pessoas idôneas e acima de qualquer suspeita surgirão, brandindo seus reluzentes e protegidos controles e promovendo abaixo assinados, onde constarão políticos de passado ilibado, artistas de cinema e esportistas olímpicos, um ou outro santo até, quem sabe (por procuração de um descendente), dizendo que nunca deixaram seus controles ao alcance do orvalho, da gordura, dos tufões ou do sereno. E que isso não é da minha conta. E que eu deveria me preocupar com as crianças abandonadas, o desmatamento da Amazônia, a alta dos juros ou com meus próprios assuntos.
Vocês têm toda razão. Eu é que estou errado, anacrônico, impuro e besta. O mundo, como a vaga de frente para a rampa, sempre será das donas Marlenes. Quando, no ocaso de meus dias, eu tiver que apertar com todas as forças o já gasto botão on/off do controle da televisão, cercado por flores murchas e crianças barulhentas, olharei no fundo dos olhos cansados de minha esposa e murmurarei, arrependido: “magipac”. “O que foi que você disse, meu amor?”. “Nada, querida, nada. Já é tarde e acho que vou dormir”.

Matando as saudades do Pratinha! Gênial e ponto!

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